Toda mulher é educada para ter filhos perfeitos lindos e maravilhosos. Nunca estamos preparadas para lidar com o diferente e a diversidade das pessoas. Mas com o tempo aprendi muito com a frase:
“As Qualidades superam qualquer defeito das Pessoas”.
A minha historia começa com o sonho de qualquer mulher. Tinha dois meninos, engravidei por acaso, no inicio me assustei porque meu marido estava desempregado, mas fiquei radiante quando descobri que era uma menina. A minha gravidez foi tranqüila, a única coisa que o obstreta dizia era que eu tinha errado nas contas porque o bebe era muito pequeno. Mas a Jéssica nasceu no dia que previ, 07 de outubro de 1990, com 2,650K. O parto foi cesariana, o bebe foi para o berçário. No outro dia quando a trouxeram para mamar, achei-a estranha, era um bebe que chorava e se contorcia o tempo todo, tinha dificuldade para sugar o seio e não se parecia com ninguém lá de casa. Perguntei à enfermeira se era normal, porque tinha dois filhos, já tinha sido babá e nunca tinha visto um bebe tão esquisito. Logo veio o pediatra dizendo que ela era um bebe saudável. Perguntou as idades dos outros filhos, quando ele viu a diferença de idade (sete anos) riu e falou que eu tinha perdido a prática. Depois veio um psicólogo, fez um monte de perguntas, e comentou que eu estava com depressão pós-parto. Tanto que tive alta, mas com indicação para acompanhamento psicológico. Em casa ninguém me deixava só com o bebe, que continuava chorando, contorcendo, e gemendo o tempo todo. Eu passava o tempo todo tentando amamentá-la era um ritual. Ela se cansava muito, quando conseguia sugar engasgava e regurgitava muito. Cheirava queijo o tempo todo e também tinha uma hérnia umbilical.
Levei ao posto para realizar o Exame do Pezinho, o resultado foi normal. Todos os meses quando ia ao pediatra e levava as minhas dúvidas era sempre ironizada, ele sempre tinha desculpas para todas as perguntas. Sempre saia do consultório pior, porque nunca era ouvida e sempre cobrada porque a criança não pegava peso. Ir ao médico para mim era uma sessão de tortura. Os problemas continuavam lá em casa, eu parecia um zumbi sem dormir, quantas noites eu corria com ela para o Pronto Socorro. Chegávamos chorando e o médico dava um remedinho, dizia ser normal o recém nascido ter cólicas ou pedia para eu não ficar dando colo, porque ela estava com manha. Quantas vezes a deixamos chorar no berço, uma noite inteira e os choros continuavam. A Jéssica rolou e quase caiu da cama com um mês, quando contei isso para o pediatra ela riu da minha cara. Com um mês ela teve uma pneumonia, foi tratada, no mês seguinte outra, até os quatro meses foram quatro pneumonias. Eu já não confiava em médicos, porque eles me faziam sentir ridícula e cobrava muito, parecia que eu era culpada de todos os problemas da minha filha.
Passei a procurar uma pediatra que eu confiava muito, e tinha atendido os meus outros filhos. Descobri que ela atendia num hospital do outro lado da cidade. Um dia a Jéssica amanheceu com muita febre e eu tinha certeza que era outra pneumonia, saia de casa às 5h sem contar para ninguém aonde ia. Fui para o hospital onde a pediatra atendia, cheguei lá às 9h, a médica era chefe da pediatria e era difícil o acesso a ela. Acabei invadindo o hospital, vieram muitos seguranças atrás de mim. No meio daquele tumulto, encontrei a médica e chorando entreguei a Jéssica para ela e pedi ajuda (acho que ela nem se lembrava de mim). Ela nos levou para o consultório tentando me acalmar, quando ela colocou a Jéssica na maca minha filha teve uma parada cardíaca. A Jéssica foi direto à UTI e depois transferida para o INCOR, onde então descobriram a grave cardiopatia que ela tinha e ninguém tinha visto antes. Parei de me sentir culpada e ela passou a tratar a cardiopatia. Aos seis meses ela foi encaminhada ao cirurgião para tirar a hérnia e na primeira consulta ouvindo o meu relato ele encaminhou a Jéssica para um Geneticista muito “famoso’. No dia da esperada consulta ele a examinou e me mandou esperar lá fora. Ele ficou impaciente porque a Jéssica chorava o tempo todo, e falou para o meu marido que a ela era perfeita, que o problema era eu e me encaminhou a um psiquiatra (esta pessoa acabou com o meu casamento).
Minha família passou a me tratar como louca. Calei-me passei a omitir vários sintomas da Jéssica, enganei muitos médicos, lembro que ela tinha intolerância a vários tipos de leites e vomitava muito. Um dia um dos meus filhos vendo a irmã chorando veio até a pia e pegou uma mamadeira azeda e deu para ela, que tomou tudo, quando vi entrei em desespero, mas notei que ela não vomitou. Então passei a dar coalhada para ela (era um segredo entre nós). Ela até ganhou peso, mas nunca contei para o pediatra porque tinha medo dele me achar mais louca. Fiquei sete anos calada, vendo os problemas da Jéssica sem poder contar para ninguém porque tinha medo de ser internada num hospício. Isolei-me não tinha vida social, porque sempre as pessoas perguntavam por que ela era diferente e a comparava com outras crianças da idade dela. O desenvolvimento da Jéssica sempre foi lento. Por ironia do destino ela teve meningite bacteriana aos dezesseis meses, não notei nenhuma seqüela, mas passaram a culpar a meningite pelos atrasos do desenvolvimento dela. Sofremos todos os transtornos e constrangimentos na escola, recorri à Justiça por várias vezes para garantir o acesso dela a Educação.
Aos seis anos a escola a encaminhou para uma sala de SAPNE (sala de apoio a pessoas com necessidades especiais), e lá eu conheci o clone da Jéssica, era um menino também negro que em tudo se parecia com ela. Falando com a mãe dele identifiquei rapidinho e ela falou que um pediatra suspeitou que ele pudesse ter Síndrome de Williams, mas ela não tinha conseguido ter o diagnóstico. Lá fui eu falar com o neurologista da Jéssica sobre este caso, mesmo antes de acabar ele me deu uma bronca. Aconselhou a retomar a terapia, recolhi-me novamente.
Um dia levei-a ao INCOR para fazer um Eco Cardiograma, estava muito exausta, o atendimento demorado, a Jéssica sempre agitada não parava um minuto. Ela improvisou um microfone com uma folha de papel subiu numa cadeira e começou a cantar. Sentei longe e fingi que não a conhecia. Passaram dois moços de jaleco branco (acredito que eram médicos), passando bem na minha frente um comentou com o outro “WILLIAMS SYNDROME”. Quando eu ouvi me levantei e segurei na mão de um dos rapazes e então percebi que eles não falavam português e eu muito menos inglês. Comecei a perguntar se tinha alguém ali que falava inglês, apareceu outro rapaz que passou a traduzir a conversa. Um dos rapazes americanos falou que a Jéssica tinha SW, para procurar um geneticista.
Foi uma luta para conseguir um encaminhamento. Todos os médicos da Jéssica tentavam argumentar que ela não tinha nada genético e sim sequela de meningite. De tanto insistir consegui o documento. Fui ao Setor de Genética do ICR /HCSP, a vaga para triagem ia demorar quase um ano, passei a ir ao hospital todos os dias em que a Genética atendia. Um dia conheci a Dra Sofia Miura que me apresentou a Dra Chong. Foi diagnosticada aos sete anos. Digo que foi neste momento que alcancei a luz no fim do túnel. A partir daí a minha história mudou, achei profissionais que ouviam e entendiam tudo que eu falava e minha filha passou a ter todos os atendimentos necessários. Tudo fazia sentido, os choros, as cólicas, a estenose aórtica supra valvar, a dificuldade de aprendizagem, o atraso motor, enfim tudo aquilo que vocês bem sabem. Também descobri que estava no caminho certo. Comecei a levá-la em diversos especialistas. Fez fono por quatro anos (para melhorar a mastigação; usou aparelho dentário aos cinco anos (correção dentária); fez terapia desde os três anos (melhorou muito o comportamento), tomou Ritalina por quatro anos (melhorou muito a concentração); teve acompanhamento psicopedagógico (ajudou muito na escola); fez acompanhamento por três anos com o psicomotrocista (ajudou muito na coordenação motora), fez acompanhamento no ortopedista por dez anos (melhorou muito o estrabismo); fez correção da válvula aórtica; tomou medicação para corrigir a bexiga; e até hoje toma medicação para hipertensão.
Na parte escolar por falta de opção estudou três anos em classe especial (tempos de incertezas). Depois de muita briga ela finalmente foi para primeira série, que foi um desastre. Classe com quarenta e dois alunos, a professora recém formada, durante três meses foi um caos. Um dia fui falar com a coordenadora pedagógica e falou que a inclusão da Jéssica não tinha dado certo e que ela deveria voltar para classe especial. Senti-me muito mal, afinal a escola nem tinha tentado e acreditava no potencial de minha filha. Fui argumentar e ela grosseiramente disse que ela tinha dezoito anos de pedagogia e eu não iria lá ensinar ela trabalhar, quem eu pensava que era. Sai dali fui direto ao Fórum queria falar com o juiz, ele não quis me receber. Dei uma de louca fiquei sentada na porta dele por quatro horas até ele me receber, então pedi uma autorização para minha filha ficar em casa. Ele ficou indignado quando ouviu minha história e foi para escola comigo, fizemos uma reunião com todos profissionais que atendia Jéssica e a escola teve que se adaptar. Isto foi uma revolução (não precisou de projetos pedagógicos) bastaram-nos ouvir. Com isto Jéssica conseguiu se alfabetizar (é claro tem dificuldades, mas consegue). Hoje com dezesseis anos está na sétima série (escola de jovens e adultos por opção dela); fala o idioma inglês; sabe ir para qualquer lugar sozinha; toma ônibus; vai ao banco pagar contas, ao supermercado, ao médico sozinha; viaja; toma suas decisões; cozinha; faz serviço de casa; palestra em universidades e outras entidades explicando o que é ser uma pessoa com SW; percebe e sabe lidar com o preconceito das pessoas.Tem sua renda fazendo bijuterias, trabalha também como voluntária uma vez por semana numa Escola de Educação Infantil, é a tia mais querida de lá.
Quando descobri que tinha uma filha diferente me desesperei, tinha sonhado em ter uma filha doutora, modelo e perfeita. Hoje vejo que atingi meus objetivos: Minha filha é doutora em lição de vida, modelo em dignidade e perfeita em tudo.
Não sei quem eram os rapazes de jaleco, mas sinto uma profunda gratidão. Se eles não tivessem aparecido no meu caminho acho que até hoje minha filha estaria sem o diagnóstico.
Sou muito agradecida a toda a equipe da Genética do Instituto da Criança do Hospital das Clinicas /SP pela atenção e carinho que nos receberam. Incentivaram-me e me ajudaram a fundar a Associação Brasileira de Síndrome de Williams.
Quero que todos saibam que toda esta nossa trajetória se deu no serviço público de saúde, nunca tivemos convênios ou médicos particulares.
Hoje temos orgulho das conquistas que conseguimos pela ABSW. Somos uma família com mães e pais maravilhosos que lutam com amor para que seus filhos e filhas SW tenham a sua cidadania garantida
Jô Nunes 2004