Pessoas com síndrome rara, que afeta desenvolvimento físico e cognitivo, têm dificuldade de reconhecer nuances de expressões faciais – mas podem manifestar talentos surpreendentes
por Andrea Lavazza
Com poucas semanas de vida, Meghan chorava no berço e não conseguia dormir. Apesar do sorriso contagiante que em tantas ocasiões iluminava seu rosto, muitas vezes parecia sofrer. E, mesmo fortemente apegada aos pais, não conseguia iniciar a comunicação verbal com eles. Aos 18 meses, veio o diagnóstico médico: retardamento mental. Fotografias de crianças com face deformada foram mostradas à mãe aterrorizada. Liz Costello devia se preparar, pois sua filha, provavelmente, teria aquelas feições, disseram os médicos.
Meghan sofria da síndrome de Williams, doença rara que atinge um a cada 20 mil recém-nascidos, devido à perda de parte dos genes no braço longo do cromossomo 7, com conseqüên-cias físicas (no desenvolvimento e na função cardíaca) e cognitivas. Além dos problemas de aprendizado, estão associadas dificuldades de raciocínio abstrato e déficit de habilidades espaciais. Em geral, o coeficiente de inteligência é 35 pontos menor que o da média das crianças da mesma faixa etária – o que provoca uma forma leve ou média de deficiência intelectual.
Quando Meghan nasceu, em 1978, pouco se sabia sobre a doença, identificada cerca de duas décadas antes. Hoje, testes genéticos podem oferecer diagnósticos – e prognósticos – mais precisos, mas no final dos anos 70 eram baseados apenas em características somáticas e de personalidade. Como tantos outros pais que passam por situação similar, ao receber o parecer dos médicos, a mãe da garota sentiu seu mundo ruir. Em poucos meses, porém, observou que a filha tinha uma característica marcante: dava atenção especial à música. A melodia a acalmava e a absorvia a ponto de tornar-se quase uma necessidade física para ela. Esse talento precoce foi o seu grande recurso para enfrentar as dificuldades. Liz costuma dizer que Meghan, hoje com 30 anos, “tem uma vida”.
NENHUM ESTRANHO Ao crescer, Meghan não assumiu os traços grotescos das imagens mostradas aos pais, embora tenha o aspecto característico da síndrome: cabeça pequena (microcefalia), testa ampla, olhos distanciados (hipertelorismo), base do nariz afundada, lábios grossos e queixo pequeno. O pescoço é alongado e os ombros, caídos.
Na escola, a criança, que, entre 2 e 3 anos, acompanhava o som das canções e adivinhava o tom, tocando piano de ouvido, não conseguia executar as operações aritméticas mais simples. No relacionamento com pessoas que não conhecia, não tinha problemas – manifestava o elemento mais característico da doença: uma notável extroversão, apoiada por boa competência lingüística, caráter afe-tuoso e ausência de inibição social. Por outro lado, pessoas com a síndrome de Williams mostram escassa compreensão da dinâmica das relações. Meghan não tinha dificuldade para manter uma conversa com quem quer que fosse, mas tendia a ignorar os sinais que, educadamente, o interlocutor transmitia para mudar o tema da conversa ou encerrar o diálogo. Estudos recentes mostram que a amígdala – pequena área do cérebro fundamental para o processamento das emoções e dos medos – de pessoas afetadas pela síndrome não é ativada quando são mostrados a elas rostos irados ou preocupados. É como se todas as expressões alheias parecessem amigáveis. Da mesma forma, escapam a essas pessoas nuan-ces que a maioria de nós infere dos rostos, da linguagem corporal e do contexto. Por causa disso, raramente têm verdadeiras amizades, embora ninguém lhes pareça estranho.
Esse paradoxo, fonte de frustração e tristeza, é também o mistério que mais atrai os pesquisadores, que reconhecem a síndrome de Williams como um “experimento da natureza”, uma espécie de modelo por meio do qual seria possível, pelo menos hipoteticamente, estudar como e em que medida os genes influenciam a inteligência e a capacidade de construir relações sociais. Isoladamente, os genes não determinam o comportamento. É o complexo genético do indivíduo que cria as estruturas e as funções cerebrais. Variações mínimas podem favorecer ou inibir certas habilidades. No caso da síndrome de Williams a falta de alguns genes estruturais induz a um menor desenvolvimento das áreas dorsais do cérebro – que influem, por exemplo, nas capacidades espaciais e no reconhecimento de intenções alheias –, contudo deixam íntegras e, talvez para compensar, até mais ricas em sinapses as áreas ventrais, ativas na linguagem, na habilidade musical e no instinto social.
Meghan começou a freqüentar a escola em classes especiais, mas participava das aulas regulares porque sua mãe estava convencida de que também se aprende observando os colegas e o professor. Nos últimos anos do ensino fundamental, porém, a auto-estima da menina começou a vacilar e os pais decidiram mudá-la de escola. Ao freqüentar por alguns anos a Maplebrook School, em Nova York, instituição para alunos que necessitam de atenção especial, a garota entrou em contato com outras pessoas que sofreram experiências traumáticas ou tinham dificuldades específicas, mas não eram desencorajadas por isso. Psicoterapia, massagens e apoio por parte da família ajudaram-na a recuperar a confiança, ao mesmo tempo que desenvolvia sua habilidade musical.
CONTRA AS PREVISÕES A grande mudança ocorreu com um estágio em Massachusetts, organizado pelo professor universitário Howard Lenhoff, pai de Gloria, cantora lírica também afetada pela síndrome de Williams. O responsável pelo curso disse a Liz: “Sua filha tem uma grande voz. É preciso explorá-la”.
Entre 1997 e 1999 Meghan estudou no programa especial da Universidade National-Louis, em Illinois, onde conseguiu, pela primeira vez, ficar sozinha longe de casa, dormindo no campus. Aos 30 anos, agora é uma pop star do universo Williams. Gravou um CD, apresenta-se em eventos beneficentes e já recebeu vários prêmios. No palco, transforma-se literalmente. Seu repertório vai de Viva Las Vegas a The glory of love. Com o microfone na mão ela é segura e entretém o público falando de rock, dos signos do zodíaco e da síndrome que marca a sua existência.
A trajetória de Meghan também influenciou seus pais. Ambos trabalhavam no setor imobiliário e agora estão envolvidos com uma fundação ligada à doença, da qual Bob Finn é um dos administradores. Liz realiza seminários para pais de crianças especiais e, com freqüência, é convidada, junto com a filha, para narrar sua história de tenacidade e esperança. Nessas ocasiões, Meghan sempre sublinha a beleza e a singularidade da vida de cada um, apesar das eventuais capacidades e desafios que enfrenta. “A síndrome de Williams não é uma doença. É possível enfrentar a falta de parte do cromossomo 7, que gera conseqüências dentro e fora do corpo. Eu me empenho para manter o equilíbrio e perceber a gravidade, mas me divirto muito falando com as pessoas”, costuma dizer. “Tenho problemas com matemática, mas gosto de dançar. Leio com dificuldade, mas gosto de aprender algo novo todos os dias.” Há alguns anos Meghan vive em San Juan Capistrano, na Califórnia, na Casa de Amma, residência concebida para permitir que pessoas como ela levem uma vida independente. “Agrada-me a liberdade que desfruto aqui. Gosto de sair com os amigos e limpar meu apartamento.
Aqui é o meu lar.” As paredes são enfeitadas com imagens de gatos, que ela adora. Três vezes por semana trabalha em um centro comercial, aplicando etiquetas antifurto: “É incrível a quantidade de coisas que são roubadas”, comenta. E ainda sobra tempo para ser voluntária em um abrigo para animais retirados das ruas. “Gostaria que entendessem que a síndrome de Williams não nos torna estúpidos, apenas diferentes. Temos nossos talentos e podemos ser amorosos”, desabafa Meghan. O neurobiólogo Robert Sapolsky-, professor da Universidade Stanford, concorda com as palavras da moça. “Pessoas que sofrem da síndrome revelam grande interesse pelas relações humanas, porém têm pouca competência social. E o que dizer dos que são aparentemente saudáveis, mas não experimentam o desejo, o calor, a empatia? São os sociopatas: sabem “ler” na mente dos outros, contudo não têm o menor interesse nisso.” Os pais de Meghan sabem que são afortunados, pois nem todas as crianças afetadas pela doença conseguem ter uma existência serena como a dela. E estão felizes em ver que sua filha tem um futuro diferente daquele da sombria profecia anunciada pelos médicos que a viram pela primeira vez. – Tradução de Marcel Crovelli
UMA AMOSTRA DE SANGUE A síndrome de Williams não é hereditária ou causada por fatores ambientais ou psicossociais. Trata-se de uma desordem neurocomportamental congênita de natureza genética, que afeta várias áreas do desenvolvimento, entre as quais a cognitiva e a motora. O primeiro paciente com os sintomas típicos foi descrito em 1952 pelo pediatra ítalo-suíço Guido Fanconi. Em 1961, o cardiologista neozelandês J. C. P. Williams publicou uma descrição da síndrome, seguido pelo alemão A. J. Beuren: “Rosto de ‘fauno’, distúrbios cardíacos, retardamento psicomotor e escasso crescimento”.
A alteração do patrimônio genético que determina a síndrome foi identificada em 1993 por A. K. Ewart. A principal causa do distúrbio é a falta de parte dos genes localizados no cromossomo 7, que se caracteriza durante a meiose, quando a hélice dupla do DNA dos pais se divide para dar origem às células reprodutivas. No interior dessa região, está localizado o gene que codifica a elastina, proteína que torna os tecidos flexíveis e cuja ausência está na origem de vários distúrbios que podem limitar a expectativa de vida dos doentes a não mais que 50 anos.
Atualmente, uma técnica denominada Fish permite estabelecer com razoável certeza, por meio de uma simples amostra de sangue, se um exemplar do cromossomo 7 está sem o gene da elastina e, portanto, se o indivíduo está sujeito à síndrome.
fonte: Revista Mente e cérebro edição 184 – Maio 2008